Diante da realidade atual da produção de alimentos, onde é imensa a contaminação por resíduos de antibióticos, pesticidas, metais pesados, entre outros; os alimentos orgânicos figuram como um oásis e real alternativa para uma alimentação mais saudável
Quadro 1
Uma equipe da Universidade de Emory, nos Estados Unidos, analisou amostras de urina de crianças entre três e 11 anos alimentadas com produtos orgânicos, e concluiu que praticamente não continham metabólitos de malation e clorpirifos, dois pesticidas de uso comum. Entretanto, depois que essas crianças voltaram a ingerir alimentos convencionais, os metabólitos rapidamente aumentaram para 263 partes por bilhão. www.terramerica.com.br – Edição 293 – 27 de fevereiro de 2006 |
No entanto, assim como o processo produtivo de alimentos convencionais, o processo de produção de alimentos orgânicos também está sujeito a contaminações de origem bacteriológica, física e químicas.
O objetivo da produção orgânica, fora os preceitos de sustentabilidade ambiental, social, etc, é a produção de alimentos sem resíduos químicos.
Mas neste processo, quais os cuidados que vem sendo tomados para a inocuidade do produto final e a segurança do consumidor?
Para respondermos a essa questão consideremos as últimas 3 décadas, quando a produção orgânica ganhou destaque nos mercados pela crescente demanda dos consumidores. Neste período produtores e técnicos estiveram mais voltados a sanar déficits tecnológicos e desenvolvendo alternativas de insumos e manejo para a produção orgânica em maior escala.
Hoje, embora ainda existam muitas lacunas técnicas a serem preenchidas e a metodologia e estrutura de pesquisa para agroecologia ainda esteja se organizando e seja incipiente no Brasil, os grandes entraves técnicos para a produção orgânica vegetal e animal estão sendo sanados.
A cadeia produtiva como um todo está melhor organizada e gargalos como planejamento e fluxo de produção, volume e variedade de produtos, logística para escoamento de produção e abastecimento dos diferentes mercados, acesso a certificação, educação de consumidores, vem sendo equacionados e resolvidos, viabilizando o volume crescente das exportações brasileiras de produtos orgânicos.
Feitas as considerações sobre a infra-estrutura básica da cadeia produtiva podemos nos voltar à questão proposta da qualidade e segurança dos produtos orgânicos.
Por exemplo, existe uma grande polêmica na mídia e nos meios acadêmicos sobre a eventual maior carga bacteriana dos produtos orgânicos.(Quadro 2)
Quadro 2
Bactérias, micotoxinas e outros problemas Em artigo publicado por Eurípedes Malavolta na seção Espaço Aberto do Suplemento Agrícola do Estado de São Paulo em outubro de 1999, o especialista, que é professor catedrático do Centro de Energia Nuclear da Agricultura, diz que os consumidores de alimentos orgânicos têm uma probabilidade 800% maior de serem atacados por uma nova linhagem (a 0157:H7) da bactéria Escherichia coli, conhecida pela grande virulência. “Ela pode atacar os rins e o fígado, causando dano interno permanente ou morte”, escreve Malavolta. Segundo ele, o esterco animal, utilizado na agricultura orgânica, é o reservatório primário da E. coli. A temperatura atingida durante a fermentação para obter composto de esterco não é suficiente para matar a E. coli. Em 1996, foram confirmados 2.471 casos de E. coli 0157:H7 e estima-se em 250 o número de mortes nos Estados Unidos. Embora os alimentos orgânicos representem apenas 1% do total comercializado naquele país, estiveram implicados em 8% dos casos confirmados dessa bactéria. |
É natural que possa existir uma maior carga bacteriana nos produtos orgânicos primários, uma vez que estes em seu processo produtivo estão mais expostos às intempéries e desafios do meio ambiente.
Cabe à pesquisa definir, de maneira isenta, a real amplitude desta contaminação. Mas cabe aos produtores e beneficiadores deste alimento trabalhar para impedir que esta carga bacteriana, maior ou menor que nos produtos convencionais, não esteja presente no produto final, na mesa do consumidor.
Outra situação: em visita a um produtor de soja orgânica, no norte do Estado do Paraná, este relatou que estava abandonando uma área de plantio, uma vez que a área ficou infestada por guanxuma (Sida rhombifolia), após a aplicação de um insumo orgânico (certificado) que veio contaminado com essas sementes e, diante da necessidade de capinas freqüentes o plantio de soja naquela área tornara-se economicamente inviável.
Saliento que o insumo era certificado para demonstrar que também os protocolos de certificação, em sua maioria, ainda não contemplam itens que garantam a qualidade do produto além da contaminação por químicos. (Este no caso apresentava a contaminação física por sementes de guanxuma)
O que deve ser feito para evitar esses tipos de contaminações (microbiológicas e físicas) ou minimizar a vulnerabilidade dos produtos orgânicos frente a esse tipo de situação?
Existe uma metodologia de análise dos perigos e pontos do processo produtivo passíveis de contaminação, quer seja ela química, física ou microbiológica.
A implementação deste sistema, denominado APPCC – Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle – ou do inglês HACCP – Hazard Analisis of Control Critical Points; já é exigida nas empresas de produção e distribuíção de alimentos, segundo a Portaria 1428/1993, do Ministério da Saúde, a Portaria 46/1998 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e sugerida ou recomendada em algumas diretrizes e normas como o Codex Alimentarius, IFOAM e mesmo na Legislação Brasileira para produção orgânica a ser promulgada (após atual revisão e consulta pública).
O APPCC deve abranger todas as etapas da produção de um alimento, desde a produção vegetal ou animal no campo, a industrialização, a manipulação, os sistemas de distribuição até o alimento a ser consumido.
A premissa básica deste sistema é a prevenção da contaminação durante cada etapa do processo produtivo e não somente a inspeção do produto final.
Este sistema foi desenvolvido em 1959 para atender às necessidades da NASA visando à inocuidade dos alimentos a serem consumidos pelos astronautas em missões espaciais.
Atualmente, a partir de recomendações do Codex Alimentarius o sistema APPCC é regido pelos seguintes princípios:
1. Identificar qualquer risco de contaminação do produto por perigo biológico, químico ou físico que necessite ser prevenido, eliminado ou reduzido;
2. Identificar os pontos críticos de controle (PCC) no processo e fluxograma da produção;
3. Estabelecer os limites críticos nos pontos críticos de controle (PCC) (índices que devem ser monitorados em pontos estratégicos do processo e que não podem ser ultrapassados sob risco de comprometimento do produto);
4. Estabelecer procedimentos de monitoramento dos PCC’s;
5. Estabelecer ações corretivas a serem realizadas se um PCC não estiver sob controle;
6. Estabelecer procedimentos para verificação da eficiência das ações corretivas;
7. Estabelecer documentos e registros que demonstram a aplicação efetiva das medidas do plano APPCC.
Como pré-requisito à implantação do sistema APPCC é recomendável que a empresa/propriedade implemente as boas práticas agropecuárias (GAP -good agriculture Practices) ou as boas práticas de fabricação (GMP – Good Manufacturing Practices).
Muitos dos conceitos e requisitos das Boas Práticas Agropecuárias já estão contemplados nas Normas para certificação de produtos orgânicos (Quadro 3), portanto os produtores e empresários do setor orgânico já exercitam muitos dos procedimentos necessários à implementação do APPCC.
O que se faz necessário então é a sua efetiva implementação nesta cadeia produtiva, regida pela conscientização de que os princípios da precaução (precautionary principles) e rastreabilidade devem sempre nortear qualquer esfera da produção de alimentos.
Quadro 3
Boas Práticas Agropecuárias/FAO-EMBRAPA |
Requisito Normas Orgânicos /IFOAM-2000 |
* Disponibilizar a todos os animais, tanto no período das águas como na seca, pastagem e suplementos que atendam as suas necessidades de mantença e produção;
* Disponibilizar a todos os animais, durante o ano todo, água limpa e à vontade
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* Os animais devem ter amplo acesso a água fresca e alimento, segundo suas necessidades fisiológicas;
* A dieta deve ser balanceada de acordo com as necessidades nutricionais dos animais
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* Manter árvores ou pequenos bosques para produzir sombra para os animais e assegurar a biodiversidade |
* O manejo do ambiente e dos animais deve propiciar ar fresco, luz natural, proteção contra chuva, radiação solar temperatura e ventos excessivos; * Deve incluir medidas que visem a manutenção e promovam a biodiversidade |
* Garantir a proteção de nascentes; * Proteger mananciais, rios, lençol freático e aguadas naturais; |
* É proibido a roçada de bosques primários; * Não é permitida a exploração excessiva e o esgotamento dos recursos hídricos locais. |
* Respeitar a legislação trabalhista |
* Deve- se assegurar que os trabalhadores sejam contemplados com políticas de justiça social. |
* Utilizar práticas adequadas de conservação do solo |
* Deve-se tomar as medidas técnicas necessárias para evitar a erosão dos solos; *Deve-se tomar as medidas necessárias para prevenir a salinização do solo e da água |
* Mantenha registro de todos os tratamentos realizados, incluindo, data, número de animais tratados/gleba, droga utilizada, período de carência. |
*Todos os produtos orgânicos devem ser adequadamente identificados durante todo o processo produtivo |
O quadro 4 ilustra um exemplo dos Pontos de Controle da Cadeia produtiva de Leite Orgânico.
Considerando o seguinte fluxograma de produção:
Quadro 4
Critério de Controle |
Ponto da Cadeia Produtiva |
Ponto de Controle |
Contaminação microbiológica: |
Produtor de leite |
Manejo de ordenha |
Contaminação química: |
Produtor de leite |
Alimentos fornecidos aos animais/ |
Contaminação Microbiológica: |
Processamento no Laticínio |
Pasteurização |
Contaminação Microbiológica: |
Armazenagem no ponto de venda |
Infra estrutura, manipulação das embalagens e condições de frio de armazenagem |
Como já foi dito, a produção orgânica pressupõe um adicional de qualidade aos alimentos pela isenção de resíduos químicos (além de contemplar conceitos de responsabilidade social e ambiental), mas isto só não basta e não a exime do cumprimento da legislação vigente para a produção de alimentos e de assegurar ao consumidor a qualidade e inocuidade do alimento adquirido.
Fabiola Fernandes Schwartz
Médica Veterinária -Diretora Técnica
SFS- Consultoria em Boas Práticas Agropecuárias
Tel.: 41-3633-4237 sfs.consultoria@uol.com.br