Animais europeus trazidos durante a colonização deram origem a uma raça adaptada ao Brasil

Quinhentos anos de seleção natural no Brasil. Este é o grande teste pelo qual passou o animal conhecido hoje como bovino Pantaneiro ou Tucura. Trazido da Europa para o País ainda na época do descobrimento por portugueses e espanhóis, a raça surgiu com a adaptação do animal às condições do Pantanal. Com o tempo, o bovino tornou-se rústico e resistente, capaz de suportar fatores pouco favoráveis em termos de clima e nutrição – mantendo altas taxas de reprodução apesar dos extremos do bioma. Ele também apresenta cascos resistentes a longos períodos de pastejo em áreas alagadas, mansidão, habilidades maternas e outras vantagens.

Porém, a raça passa por um momento delicado: encontra-se em alto risco de extinção, com cerca de 500 indivíduos considerados puros em todo o País, que são monitorados por pesquisadores. Os cruzamentos indiscriminados com animais de outras raças fizeram com que a linhagem do bovino Pantaneiro quase se perdesse. Quem dá essas informações é a pesquisadora Raquel Juliano, da Embrapa Pantanal. A veterinária assumiu há sete anos a gestão do Núcleo de Conservação in situ da instituição, que é mantido na fazenda Nhumirim, campo experimental da Embrapa Pantanal localizado no Pantanal da Nhecolândia. O núcleo foi criado em 1984 com a finalidade de conservar esse material genético e vem viabilizando diversos estudos com esses animais.

“Os projetos mais recentes têm investigado a aptidão produtiva, resistência a doenças e rusticidade através da abordagem de marcadores genéticos”, afirma Raquel. Pesquisadores de cinco Unidades da Embrapa e várias outras instituições estão envolvidos nas pesquisas dos potenciais da raça, buscando também evitar que esses animais sejam extintos. Os resultados, até agora, são promissores: um exemplo são os estudos realizados entre a Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília, e a Universidade Federal de Goiás (UFG), coordenados pela pesquisadora Andréa Egito, da Embrapa Gado de Corte. Eles demonstram que o Tucura possui diferenciais de suculência e maciez de carne – herança dos ancestrais taurinos europeus. E a produção de carne é apenas uma das possíveis aptidões do animal.

Na prática

As pesquisas estão conseguindo provar o que alguns criadores já sabiam. Thomas Horton, pecuarista do Estado de Mato Grosso do Sul, optou por manter um rebanho formado inteiramente por bovinos Pantaneiros. “Eu tenho touro de uma tonelada, bezerro que desmama com 200 quilos”, diz Thomas. Ele afirma que o custo de criação do Tucura é menor e que, para uma propriedade de porte médio como a dele, a raça é uma ótima escolha. “Achei os animais de fácil manejo, com uma boa resistência a carrapatos e verminoses, e verifiquei nas pesquisas que foram feitas com a Embrapa e parceiros a qualidade da carne, o marmoreio que ela tem”, conta o criador.

Os materiais genéticos dos animais da raça que apresentam características interessantes para a pecuária são armazenados no Banco de Germoplasma Animal da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. De acordo com o pesquisador Alexandre Floriani, o banco possui atualmente cerca de 13.000 doses de sêmen de touros Pantaneiros. “Essas doses preservam características que podem ser importantes no futuro, como a resistência dos cascos, resistência a parasitas, a enfermidades, ao calor… as características de adaptação ao bioma”, diz o pesquisador.

Repercussões do trabalho

Em 2012, com o apoio da Embrapa, foi criada a Associação Brasileira de Criadores de Bovino Pantaneiro (ABCBP), com sede em Poconé (MT), sob a presidência de Paulo Moura, criador e parceiro em pesquisas com a raça há mais de quinze anos. Segundo Raquel Juliano, que também integra a diretoria da associação, até o final deste ano deve ser feito o pedido de registro da raça bovino Pantaneiro junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). “O reconhecimento da raça vai além dos aspectos econômicos, com valores culturais e sociais agregados. Ele valoriza a região e o potencial produtivo que pode surgir do Pantanal, incentivando também o trabalho dos produtores locais”, afirma a pesquisadora.

Com o aumento das ações para estudo e conservação do bovino, surgem outros pecuaristas interessados. É o caso de Marcus Ruiz, que procurou no início deste ano um touro Pantaneiro para cruzar com as vacas Tucura que já possuía na propriedade. Ele espera o nascimento de cerca de 40 bezerros em novembro e pretende investir na produção de leite da fazenda com as vantagens de uma raça adaptada. “A raça tem mansidão e aptidão leiteira que chamam a atenção, com vacas que produzem leite muito gordo e possuem boa lactação”, afirma. Ele também ressalta a resistência a parasitas dos animais. “Hoje, é quase impossível produzir leite se não for usada uma quantidade maciça de carrapaticida no gado de origem europeia. Com o gado Pantaneiro, eu quase não tenho problema com carrapatos”, diz.

Pesquisas recentes

Trabalhando em parceria com o criador Marcus Ruiz, o pesquisador Marcus Vinícius de Oliveira, da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), realiza experimentos para identificar animais com potencial genético para leite dentro da raça. “Vale lembrar que esse grupo genético não sofreu nenhum trabalho de seleção e melhoramento até hoje” diz Marcus Vinícius – como sofreu, por exemplo, a raça Girolando. Mesmo assim, o pesquisador afirma que identificou uma produção leiteira que já é superior à média do MS: cerca de  5,1 kg/dia, em comparação com os 2,2 kg/dia produzidos no estado.

Essa aptidão foi verificada ainda nos estudos realizados dentro da Rede de Caracterização, Conservação e Uso das Raças Bovinas Locais Brasileiras: Curraleiro e Pantaneiro da Rede Pró-Centro-Oeste de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação – que viabiliza parcerias entre pesquisadores de diferentes instituições do Centro-Oeste. Segundo Maria Clorinda Fioravanti, pesquisadora da Universidade Federal de Goiás e coordenadora da rede que investiga aspectos do bovino Curraleiro e Pantaneiro, “nós encontramos indícios de que o leite dessas raças têm características importantes em relação a aspectos higiênico-sanitários, além de um perfil mais adequado para a produção de derivados especiais, como o tradicional queijo pantaneiro conhecido como Nicola”, afirma.

Futuro

Com evidências dos potenciais do bovino Pantaneiro sendo comprovadas por diversas pesquisas, abre-se um panorama para o aproveitamento dessas características nos sistemas produtivos. “É um nicho comercial nesse sentido, de poder apresentar um gado com história ao mercado, que tem toda uma ligação com a terra, que aguenta esse nosso calor para produzir produtos diferenciados”, afirma o criador Marcus Ruiz. Clorinda Fioravanti destaca ainda possibilidades como a comercialização da carne com selos e certificações, além do turismo ecológico, mostrando o animal em seu habitat. “O bovino Pantaneiro tem um papel fundamental na manutenção do ecossistema”, diz a pesquisadora.

Porém, para que tudo isso aconteça, pesquisadores e pecuaristas ressaltam a importância de resgatar a população de bovinos Pantaneiros, divulgando seus potenciais para gerar interesse e conscientização por parte de criadores e consumidores. “O preconceito de que essa não é uma raça produtiva é o principal desafio a ser vencido para reintroduzi-la nas propriedades”, afirma Raquel Juliano. O criador Thomas Horton finaliza: “Mesmo cruzando com uma fêmea Nelore, por exemplo, o criador que investiu vai ter um meio-sangue rústico e produtivo. O animal tem potencial, tem um bom ganho de peso. O produtor pode comprar o Pantaneiro que vai ter uma carne de qualidade”.

Fotos: Pedro Paulo Horton
Texto: Nicoli Dichoff

Nicoli Dichoff
Jornalista – 3252/SC
Núcleo de Comunicação Organizacional (NCO)
Embrapa Pantanal/ Corumbá – MS
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa

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